A República contra a Máquina

1- Não o mero viver, mas a busca da vida bela. 2- A Liberdade não se negocia, a Paz sim. "Pode-se imaginar um prazer e força na auto-determinação, uma liberdade da vontade, em que um espírito se despede de toda crença, todo desejo de certeza, treinado que é em se equilibrar sobre tênues cordas e possibilidades e em dançar até mesmo à beira de abismos. Um tal espírito seria o espírito livre por excelência" (Nietzsche. Gaia Ciência, parágrafo 347)

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terça-feira, março 06, 2007

Civilização e Barbárie

Contra a maré

É irritante o uso sem critério da palavra "barbárie" hoje em dia. Usa-se a palavra barbárie o tempo todo quase como um jogral. Não param de repetir: "Isso é barbárie!" , "A civilização está ameaçada pela barbárie!", "Nós defendemos a civilização, vocês defendem a barbárie!". E o jogral liberal sempre recomeça quando, diante de um crime hediondo (como o do garoto de 6 anos que foi arrastado), o povo passa a manifestar "desejos bárbaros de vingança", ou quando um intelectual como Renato Janine diz não perdoar os assassinos, fazendo coro com "os instintos baixos do povo" (sic). "Isso é defender a barbárie!", dizem os "civilizados".

Como se civilização e barbárie fossem duas coisas opostas e externas uma à outra!!!

A civilização foi construída através da barbárie. Para que o "animal homem" se tornasse "civilizado" foi necessário reprimir os seus instintos vitais. Não podemos negar as vantagens que conquistamos nesse "progresso", mas também não podemos esquecer o custo do "progresso". A repressão dos instintos se deu através da dor. Para que um indivíduo "aprendesse" que um determinado instinto tinha que ser reprimido, ele teve que ser "educado": a irrupção do instinto era reprimida provocando o sofrimento físico ou moral do indivíduo. Este sofrimento fica gravado na memória. Mas os instintos não desaparecem, eles apenas não podem mais ser colocados para fora, então eles voltam-se para dentro, contra o próprio indivíduo, transformando-se em "consciência de culpa" ou "má consciência". Freud seguiu nessa linha, e viu na repressão do instinto sexual a causa da neurose. Não é sem custo que se construiu a "civilização".

A "civilização" surgiu com a escravidão. Os períodos clássicos, na Grécia e em Roma – aqueles períodos caracterizados pelo esplendor da cultura, das artes e da filosofia – coincidem com os períodos de maior escravidão. Atenas, em seu auge cultural estava em seu auge em número de escravos. Roma também. Só foi possível produzir filosofia, obras de arte magníficas, peças de teatro, quando uma parte da sociedade não precisou mais se preocupar o tempo todo com a "sobrevivência". Isso aconteceu quando ela pôde se apropriar do trabalho de outra parte da sociedade. Com a escravidão da maioria há tempo livre para uma minoria, que produzirá "coisas belas" e "sérias" (filosofia). Quem se preocupa o tempo todo em sobreviver tem mais dificuldades nessa produção. Tanto é que, mesmo entre "o povo", normalmente são os "vagabundos" que se tornam poetas, músicos, artistas. Os "trabalhadores" são mais raros como artistas.

E a civilização moderna também não é assim? Ou então hoje não há mais relação entre "cultura" e "escravidão" porque não há mais escravidão? O mais provável é que não haja mais cultura. Quanto à escravidão, só com muito esforço sofístico se pode dizer que hoje o "trabalho é livre". Se assim fosse, as pessoas trabalhariam voluntariamente, e não pressionadas pela necessidade de comer e pagar aluguel. Se assim fosse, as pessoas não teriam mais doenças psíquicas relacionadas ao fato de terem que aceitar um trabalho que odeiam e ao fato de sofrerem assédios morais. Se assim fosse, os funcionários da empresa não sairiam correndo quando toca o sinal e já é permitido bater o ponto... Em muitos aspectos a escravidão até aumentou, mas tornou-se mais amena e imperceptível (no Brasil nem tão amena assim...).

Não foi sem preço a construção de coisas "belas e civilizadas":
"Para que haja um solo mais largo, profundo e fértil onde a arte se desenvolva, a imensa maioria tem que se submeter como escrava ao serviço de uma minoria, ultrapassando a medida de necessidades individuais e de esforços inevitáveis pela vida. É sobre suas despesas, por seu trabalho extra, que aquela classe privilegiada deve ver-se liberada da luta pela existência, para então gerar e satisfazer um novo mundo de necessidade. (...)
Por isso, podemos comparar até mesmo a cultura magnífica com um vencedor manchado de sangue, que em seu desfile triunfal arrasta os vencidos como escravos, amarrados a seu carro: e eles, a quem um poder benfeitor deixou cegos, continuam gritando, quase esmagados pelas rodas do carro: 'dignidade do trabalho!', 'dignidade do homem'!
"
(Nietzsche. O Estado Grego. Cinco prefácios para cinco livros não escritos)

Civilização nunca foi oposta à barbárie, ela foi construída com a barbárie. Para alguns, esse é um preço a pagar para termos os benefícios da civilização. O problema maior é ignorar o preço que foi pago, porque aí não se têm elementos para julgar se o preço foi justo ou se podemos tentar uma outra proposta. Em geral, a direita "liberal" acha que o preço pago valeu a pena. A esquerda "liberal" ignora o preço que foi pago (ou tenta ignorar, para não sofrer com a visão do horror, pois eles são muito delicados).

Uma esquerda conseqüente não pode ignorar o custo da civilização. Não pode fingir não ver a barbárie na civilização, a barbárie do progresso, para então construir um idílico mundo baseado no contrato social e na "ação comunicativa". São castelos de areia destinados a deixar intacto o elo entre "civilização e barbárie". Isso não significa que uma esquerda conseqüente tem que ser contra o "progresso", tem que ser "primitivista". Não!!! Mas as "vantagens da civilização" já nos são mostradas todos os dias. O preço não. Uma esquerda conseqüente não é contra o "progresso" em bloco, mas também não pode aprová-lo em bloco, e não pode transformar conceitos como "civilização", "progresso", "razão", "democracia", "liberdade" em noções indiscutíveis, em dogmas, verdades "naturais", ignorando o jogo de forças que produziu como resultado esse "progresso", ignorando assim o custo de nossa civilização. A tarefa é desmontar essas noções, mostrar elas por inteiro, reconstruir a sua história sem medo de ser tachado de "bárbaro" pelos apologistas da civilização liberal. Com os "pés leves". Assim, podemos abrir os olhos para outra história e lutar por ela. Walter Benjamin foi um dos poucos que não caíram na história dos tocadores de realejo do progresso, e acentuou a importância de "escovar a história a contrapelo":
"Todos os que até hoje venceram participaram do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico não os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima de seus contemporâneos. Nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento de barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo." (Walter Benjamin. Sobre o conceito de história. Tese 7."

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Brutus,
Como é que o materialista histórico se desvia da cultura, ou de seu processo de transmissão (não sei bem a qual dos dois Benjamim se referia)?
Não é exagerado afirmar que só foi possível o desenvolvimento das artes e da filosofia graças à escravidão, dado que hoje há ainda "escravidão" sem que tenhamos uma contrapartida em prduções estético-filosóficas? Ou que os "vagabundos" tornam-se artistas? - pode-se bem pensar que o gênio artístico é pai do "vagabundo".
Como parece que você é um materialista histórico, gostaria de saber como você se distancia da cultura, à qual você parece dar algum valor. Se fosse preciso escolher, o que seria melhor, um mundo de belezas que brotam de "um solo mais largo, profundo e fértil" , ou uma estéril comunidade de iguais? Na verdade, espero que essa escolha não faça sentido...

07 março, 2007 09:54  
Blogger Jean Gabriel said...

Acho que seria exagerado dizer que só pode existir cultura onde há escravidão, não podemos prever o futuro. Mas não acho exagerado dizer que foi assim até hoje. Basta olha para o passado.
Mas aí você levanta uma pergunta boa e difícil sobre o fato de que hoje ainda temos escravidão, mas a cultura parece decair, ou nem existe... Como você responderia essa questão? Que hipóteses você levanta?
Quando todos se tornam escravos, mesmo a "classe dominante", quem tem verdadeiramente tempo livre? (Ao contrário dos nobres, a burguesia tem que cuidar dos negócios)

Quando o dinheiro se torna o principal valor e não se estima mais um "tipo elevado de homem" há um nivelamento por baixo que pode empobrecer a cultura? Como a "indústria cultural" empobrece a cultura?

Quanto à sua última pergunta não acho que seja preciso escolher entre um "mundo de belezas" e uma comunidade de iguais", mas ainda não encontrei argumentos para isso. O que você acha?

07 março, 2007 12:40  
Blogger Jean Gabriel said...

Acho que Benjamin, não estava querendo se desviar da cultura no sentido de desprezá-la só pelo fato de ela ter se construído sobre a barbárie, a escravidão etc. Ela era crítico de arte também. Ele admirava as obras de arte. Mas, como materialista histórico não poderia ver apenas a "metade" da história, o lado belo. Tinha que refletir também sobre o preço que foi pago, até para imaginar e lutar por um mundo radicalmente diferente no futuro. Ignorar esse passado por inteiro (e ficar apenas com a metade) é não refletir sobre ele, e assim, o mais provável é repetí-lo. O elo que existiu e existe entre a cultura e a barbárie permaneceria intacto, quando para o materialista histórico trata-se de desfazer esse elo.

07 março, 2007 12:48  

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